O castelo e as marés

Mariza Alves Braga
Doutoranda em Filosofia, Mestre em Educação e Professora na Universidade Estácio de Sá.

Acompanhando o movimento do Poder Judiciário na direção de uma sociedade mais justa e solidária, atualmente voltado para a criação de um Novo Código de Processo Civil, é possível observar que a aproximação da meta almejada pode se dar pela necessária compreensão de que a criação e re-criação desse movimento deve considerar a condição de transitoriedade a que a vida nos submete.
As práticas jurídicas vinculadas simbolicamente ao desejo de permanência representado pela dogmática jurídica devem se permitir uma percepção contínua das vivências sociais e das mudanças provocadas pela situação política e econômica que impulsiona a nação.
O encontro do movimento da vida com a justiça continua hoje ainda imerso na prioridade dada às exigências institucionais, que como entendido por Aurélio Wander Bastos “se organiza para atender às prioridades judiciais do Estado”, alongando a questão trazida por Foucault de que “o desprezo pela garantia da liberdade e da justiça, pode reforçar a manutenção dos centros de poder social e suas práticas de controle”.
Esta reflexão indica que a busca por alternativas mais amplas e flexíveis está a caminho, postulando um caráter menos formalista e considerando a diversidade sócio-econômica como fonte de valores culturais que envolvem sujeitos históricos e “portadores de demandas e necessidades não enquadráveis nas generalizações abstratas do tipo de direito hoje vigente”, como aponta Horácio Wanderley Rodrigues.
O pensamento filosófico, base da construção das ciências, abre caminho para a consideração de que o apelo pragmático e sistematizador das normas jaz na obscura atividade desse pensamento. O afastamento das concepções filosóficas, como um olhar crítico sobre a realidade sócio-político-jurídica, impede o questionamento sobre esse pragmatismo obstinado das normas e impossibilita a visibilidade e a legitimidade do contexto instituinte.
O caráter ativo do Direito nega a ação prática da lei como único recurso. Recusa o caráter perspectivo da aparência e revela a complexidade e a multiplicidade que requer a aplicação da justiça. O conhecimento atua como saber vivido e explorado em sua essência instintiva e criadora.
A existência mesma dos homens possibilita os desvios capazes de identificar os conflitos e os caprichos presentes na vida humana. O Direito, como o artista, sabe que a Lei é a sua arte e age nessa relação como se ela fosse o que ele é capaz de representar, conceber, exprimir. Com isso, o Direito passa a ter a personalidade da Lei depositando nela a representação da autoridade, do espírito científico assentado em si mesmo, o que predomina e age livremente, a obra. Assim, pela sua extraordinária elevação, a Lei torna-se, na percepção de Nietzsche, “um oráculo, um sacerdote, uma espécie de porta voz do em si das coisas”.
Para simbolizar através da arte a feição da luta existente entre o Direito e a Lei, na busca permanente pela justiça, os deuses mitológicos Apolo e Dionísio com suas características próprias, podem traduzir esta disputa.
No deus Apolo, assim como na Lei, estão presentes as qualidades estéticas, a beleza e a força, o espírito científico a representação da verdade, o critério da evidência, a convenção, a Lei instituída pelo desejo de ordem que persegue a humanidade.
Dionísio, assim como o Direito reflete a característica instintiva que marca a força do conflito, da controvérsia, do trágico e do inebriante, presentes nos subterfúgios do homem. Expressa a experiência vivida articulada às lutas sociais.
Apolo descuida-se do ritmo do trágico e Dionísio transcende e inspira outras formas de transposição da vida.
Assim, a articulação entre os valores pressupostos na Lei e no Direito podem experimentar o nascimento de caminhos inovadores capazes de sacudir os critérios de evidência e de certeza contidos nos pressupostos de Apolo e demonstrar a fragilidade, o enigmático proveniente da experiência inebriante de Dionísio.
Expandir esse entendimento é enxergar, para além dos dramas do dia a dia, os valores históricos, filosóficos, antropológicos e políticos que foram e estão sendo construídos. É invocar um Direito que se consolide social e politicamente em consonância com o indivíduo e a coletividade.
Com isso, a construção de um Novo Código de Processo Civil é propulsor de novas descobertas, de novas manifestações dos sentidos múltiplos do Direito como percepção da vida. Direito capaz de reconhecer, que a liberdade só é libertária, para novas experiências, se o medo de romper, por vezes, com as amarras seguras dos dogmas possam nos levar a flutuar entre o mar dos saberes e dos deveres que se manifestam através da ondulação que as marés da vida embalam. Assim, o castelo forte e vigoroso da lei nos protege dos ventos e das tempestades e as marés nos levam a lugares nunca vistos e nos permitem conhecer para além dos cantos do castelo.

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