As áreas de proteção ao ambiente cultural – APAC

Walter Aranha Capanema (1)

Introdução:

O Direito Administrativo é um ramo jurídico rico em institutos e controvérsias. Sem dúvida alguma, as Áreas de Proteção ao Ambiente Cultural reúnem essas duas características, por se tratar de uma modalidade de limitação administrativa própria do Município do Rio de Janeiro, de duvidosa legalidade e de relevância até mesmo para os concursos públicos. (2)
Todavia, a sua relevância não tem a devida repercussão na doutrina jurídica, com raríssimas análises a esse tão importante instituto, exigindo do articulista uma verdadeira atividade investigativa perante os órgãos públicos.
Pretende-se aqui traçar um panorama geral das APACs, mostrando, principalmente, as suas características tão peculiares.

1. Conceito e natureza jurídica:
O Plano Diretor do Município do Rio de Janeiro (Lei Complementar Municipal 16/92) conceitua em seu art. 124, III como “Área de Proteção do Ambiente Cultural – APAC, de domínio público ou privado, a que apresenta relevante interesse cultural e características paisagísticas notáveis, cuja ocupação deve ser compatível com a valorização e proteção da sua paisagem e do seu ambiente urbano e com a preservação e recuperação de seus conjuntos urbanos”.
É um instrumento autônomo de execução de ações governamentais, (3) e que objetiva proteger bens de interesse cultural e que, conforme a definição legal, atingindo tanto bens privados como públicos.
É curioso verificar que esse instituto também atinge bens públicos, notadamente bens de uso comum, o que, na prática, já ocorreu na APAC da Ilha do Governador, com a proteção de logradouros públicos.
Quanto à sua natureza jurídica, a jurisprudência entende que se trata de uma modalidade de limitação administrativa, pois se trata tão-somente de uma série de medidas restritivas à propriedade privada em prestígio ao interesse público. (4)

2.Origem histórica:
A criação das APACs decorreu da ratificação do Brasil à Carta de Veneza, de 1964, que trata da proteção e conservação de monumentos históricos e arquitetônicos e que tem, como uma das suas diretrizes, a necessidade de conservação permanente dos monumentos (art. 4º). (5)
Fundamenta-se na proteção constitucional aos bens culturais e históricos (art. 30, IX e art. 216, §1°, CF)
As APACs sugiram com a denominação APA – Área de Proteção Ambiental, e as primeiras áreas protegidas foram o Corredor Cultural (Centro) e Santa Teresa, em 1984 (6), e normalmente eram disciplinadas por leis ordinárias municipais.
Com a edição da Lei Complementar Municipal 16/92, houve uma divisão: as APAs tratariam apenas do ambiente natural, ficando o uso da APAC limitada aos ambientes construídos, mediante regulamentação por meio de decreto do Chefe do Poder Executivo Municipal.

3.Medidas impostas pela APAC:

Não existe previsão legal sobre quais as medidas que podem ser impostas pelas APACs, permitindo que a proteção ao ambiente cultural seja exercida pela “criatividade discricionária” do Administrador Público.
Tal liberdade fica evidente nos seguintes exemplos: proibição de corte das árvores dos logradouros públicos do Largo do Machado (APAC Catete/Glória) ou, ainda, o controle da inserção de publicidade e letreiros nos imóveis (APAC do Leblon).
Na realidade do Município do Rio de Janeiro, o emprego da APAC está em uma área cinzenta, própria do tombamento, o que gera grande confusão, pois grande parte dos decretos que criam APACs estabelecem o dever de conservação e de preservação do imóvel ao proprietário ou ao possuidor, muito semelhantes àquelas estabelecidas pela Lei Geral de Tombamento (Decreto-Lei 25/37) ou por suas correlatas estadual (Decreto-Lei Estadual 2/69) e municipal (Lei Municipal 166/80).
Essa confusão de institutos fica mais evidente quando a APAC exige que o proprietário realize obras de conservação da fachada com a autorização do Poder Público, ou ainda, não altere o aspecto arquitetônico do imóvel.
Se o instituto do tombamento já existe, e com os mesmos objetivos, porque a APAC foi criada?

4.Da real finalidade da APAC:
Nos últimos anos, o instituto da APAC tem sido desvirtuado da sua real finalidade de proteção ao ambiente cultural. Em bairros nobres da Zona Sul do Rio de Janeiro, como Ipanema e Leblon, a sua utilização se dá de forma a impedir o surgimento de novos edifícios e o aumento da especulação imobiliária nessas áreas valorizadas.
Essa séria afirmação se conclui ao analisar o Decreto 20.300/2001, que instituiu a APAC do Leblon (7), a mais controvertida de todas, com diversas ações judiciais impugnando a sua validade.
A APAC do Leblon foi criada, conforme estudo técnico da Prefeitura, que a instrui e funciona como sua motivação(8), para preservar a identidade cultural do bairro, especialmente as linhas arquitetônicas em art-deco, conforme a seguinte constatação:
“Das 1000 edificações aproximadamente, existentes no bairro, a maioria é de prédio de apartamentos, com até cinco pavimentos, tipo edifício-casa, com ou sem pilotis, representantes da arquitetura entre 1940 e 1960″
Mas se há a importância histórica de tais imóveis, porque não há o tombamento diretamente? Tal resposta é simples: o tombamento possui um procedimento administrativo previsto em lei, o que não ocorre na APAC, que é normalmente instituída sem qualquer notificação do proprietário.
Esse entendimento, inclusive, é comungado por Carvalho Filho, para o qual a APAC seria ilegal, e a sua utilização estaria destinada ao controle da política urbana(9).
Deve-se relembrar que o próprio Estatuto da Cidade já prevê instrumentos para conter o crescimento imobiliário desordenado,tal como, por exemplo, o estudo de impacto de vizinhança (arts. 36 a 52 da Lei 10.257/2001).
Todavia, o Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro já afirmou que a instituição de uma APAC exige a prévia notificação dos moradores da área a ser atingida:
“INTERVENCAO DO MUNICIPIO
DIREITO DE PROPRIEDADE
AREA DE PROTECAO DO AMBIENTE CULTURAL
FALTA DE NOTIFICACAO
VIOLACAO DO DIREITO DE AMPLA DEFESA

Intervenção do Município na propriedade privada. Criação da APAC de Ipanema. Decreto que determinou a preservação do imóvel dos apelantes. Ato limitador cujos motivos devem ser expressos. Vinculação do administrador aos motivos alegados, o que pode ser objeto de análise pelo Judiciário. Defeito no procedimento administrativo. Ausência de notificação da parte prejudicada. Inexistência de contraditório e ampla defesa. Nulidade. Provimento do recurso” (TJRJ – 2005.001.12498 – APELACAO – DES. LEILA MARIANO – Julgamento: 31/08/2005 – SEGUNDA CAMARA CIVEL).

Conclusão:
O instituto da APAC é riquíssimo e possui diversas outras particularidades. Nesse primeiro contato, buscou-se apresentar as suas características primordiais, bem como afirmar que o seu uso pelo administrador público visa tão-somente a conter o crescimento imobiliário, afastando, assim, a proteção do ambiente cultural.
Cabe ao operador do Direito, portanto, reconduzir o Administrador ao correto emprego da lei, escoimando a prática de excessos ou arbitrariedades.

(1) Advogado, consultor, coordenador do Projeto “Combate ao Spam” , Professor de Direito Administrativo Direito Processual Civil, Metodologia da Pesquisa e Didática da Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro (EMERJ); de Direito Público dos Cursos de Pós-Graduação em Direito Público e Direito Imobiliário da Universidade Estácio de Sá (UNESA); de Direito do Estado da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e dos Cursos de Direito Eletrônico e Processo Eletrônico da OAB/RJ, da Caixa de Assistência dos Advogados do Rio de Janeiro (CAARJ) e da Escola Superior da Advocacia (ESA). Coordenador do Curso de Extensão em Direito Informático da Universidade Estácio de Sá e Secretário-Geral da 1ª Comissão de Direito e Tecnologia da Informação da OAB-RJ para o biênio 2010-2012. Autor do livro “O spam e as pragas digitais: uma visão jurídico-tecnológica” (Editora LTr, 2009), e de diversos artigos publicados.
(2) O Concurso da Magistratura do TJRJ de 2008 teve, em sua 2ª fase, uma questão de Direito Administrativo que tratava das APACs.
(3)Processo nº 2002.004.00184 do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro. Relator Des. Jessé Torres.
(4)Processos 2006.001.43739 e 2007.001.31969. Carvalho Filho entende que a APAC se trata de uma limitação administrativa urbanística (CARVALHO FILHO: 2007, p.709-710)
(5) IPHAN. Carta de Veneza. Disponível em . Acesso em: 05.05.2011.
(6) Prefeitura do Rio de Janeiro. Disponível em . Acesso em: 20.05.2009; Disponível em < http://www0.rio.rj.gov.br/patrimonio/apac/>. Acesso em: 05.05.2011.
(7) Prefeitura do Rio de Janeiro. Disponível em < http://www0.rio.rj.gov.br/patrimonio/ apac/anexos/decretos/decreto_20300.pdf>. Acesso em 05.05.2011.
(8) Prefeitura do Rio de Janeiro. Disponível em < http://www0.rio.rj.gov.br/patrimonio/apac/ anexos/leblon_textos.pdf>. Acesso em 05.05.2011.
(9)CARVALHO FILHO, op cit.

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