Renascer na Mesma Vida

RENASCER NA MESMA VIDA

Luiz Fux

Fernando Pessoa descortinando a sensação do “novo” afirmava que por vezes é preciso desaprender para aprender; “esquecer para lembrar”, “raspar a tinta com que pintaram os nossos sentimentos para voltar a amar”, porque não se pode servir à sua época e a todas as épocas ao mesmo tempo, nem escrever para Homens e Deuses o mesmo poema. A lição do poeta ecoa nesse “novo tempo” em que se escreve “um novo direito” na trilha filosófica de Cesare Vivanti (Altro tempo, altro diritto). Essas reflexões assomam às mentes dos que se debruçam sobre o direito e a justiça no momento em que uma comissão criada pelo Senado labora na criação de um Novo Código de Processo Civil.

A honrosa tarefa consiste em elaborar regras através das quais o Estado-juiz presta justiça ao cidadão que pede justiça.

A principal preocupação hodierna consiste na demora da prestação judicial, tangenciando o risco advertido outrora por Eduardo Couture de que “justiça retardada é justiça denegada”. Por outro lado, todas as declarações de direitos fundamentais do homem são uníssonas em assentar que um país que não se desincumbe de prestar justiça em prazo razoável revela ostentar uma “justiça inacessível ao povo”. Rudolf Jhering advertira que se as injustiças perpetradas pelos homens de “carne e osso” eram más, a injustiça do sistema era “intolerável”. Esses dogmas invadiram mentes e corações dos membros da comissão, por isso que o ideário motivador não foi outro senão a “celeridade da resposta judicial” e a “duração razoável dos processos”.

O primeiro valor considerado de há muito como um grande desafio por notáveis juristas como Francesco Carnelutti preanuncia travar o juiz no processo uma luta incansável e invencível. O professor carioca Barbosa Moreira, um brasileiro de orgulho, nas suas aulas revelava que “ninguém pode aguardar a consumação de um século para obter a reparação do seu direito violado”…

Esses fatores influenciaram sobremodo os trabalhos da comissão e, sob essas luzes, diagnosticou-se como obstáculos a uma justiça rápida; o excesso de formalidades do processo; o volume desmedido de ações, e a quantidade de recursos submetidos ao crivo dos tribunais, notadamente os superiores, os quais exercem o controle das decisões judiciais em todo o território nacional.

Assim é que o excesso de formas foi enfrentado com a técnica da desformalização inútil de determinadas etapas processuais sem violar o devido processo legal. O volume das ações, como consectário da promessa constitucional de que nenhuma ameaça ou lesão a direito deve escapar da apreciação do Judiciário, é enfrentado com instrumentos modernos existentes nos países evoluídos, quer de origem romano-germânica, como o Brasil, filiado ao sistema do civil law, quer no sistema da common law; as causas iguais e que versam a mesma questão jurídica devem ter a mesma solução judicial. É que, por força do Princípio da Isonomia, “se todos são iguais perante a lei, devem ser iguais perante a justiça”. A solução nesse caso de volume das ações iguais foi escolher causas-piloto, ações repetitivas e sujeitar um grupo a uma solução uniforme para todo o país.

A prática vem sendo muito bem recebida na Alemanha na percepção de Wolfgang Lucke (pilotverfarhen), bem como no sistema anglo-saxônico, como informa Neil Andrews (group litigation). Essa solução resolve a um só tempo o irracional número de ações e recursos submetidos ao Judiciário, o que segundo o dito popular permitirá “matar milhões de coelhos com uma só cajadada”. O excesso de recursos foi reavaliado, para que, sem ferir a Constituição da República, o cidadão possa exercer a ampla defesa, sem abusos.

Uma última palavra sob a ótica de que a justiça é uma função popular: foram recolhidas 600 sugestões por e-mails; 240 oriundas das audiências realizadas em todo o Brasil e 200 da comunidade jurídica; compreendidas advocacia pública e privada e a Academia.

Novos tempos, novos direitos. Nesses momentos não deve preponderar nem o mimetismo que se compraz em repetir o que já houve outrora, nem desconhecer os bons materiais na hora da reconstrução. E foi exatamente a inspiração da comissão — aproveitar o aproveitável e ousar quanto ao novo, sem medo de errar. Martha Medeiros nas suas belas crônicas descreve coincidentemente as sensações por que passaram os membros da comissão, assim sintetizadas em “Aprendendo a desaprender”: “Houve um tempo em que eu pensava que para desaprender para aprender seria preciso nascer de novo, mas hoje eu sei que dá pra renascer várias vezes na mesma vida. Basta desaprender o receio de mudar.” A comissão também teve a singular visão de que é possível “renascer várias vezes na mesma vida”.

LUIZ FUX é ministro do Superior Tribunal de Justiça e presidente da comissão encarregada da elaboração do Novo Código de Processo Civil.

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