Novo código fortalece o juiz de primeira instância

Fonte: Valor Econômico, 04/02/2011

Elaborado para simplificar procedimentos processuais e reduzir as possibilidades de recursos, o projeto do novo Código de Processo Civil, aprovado em dezembro pelo Senado, acabou fortalecendo a primeira instância. Os juízes ganharam “superpoderes”, segundo especialistas. Entre eles, a possibilidade de o magistrado executar uma sentença antes mesmo da análise de um recurso por um tribunal de segunda instância. “Vamos ter um imperador em cada vara”, critica o advogado e professor de teoria geral do processo e direito processual civil da Universidade de São Paulo (USP), Antônio Cláudio da Costa Machado, que redigiu manifesto da seccional paulista da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) contra o projeto, que agora será analisado pela Câmara dos Deputados.

O novo código foi elaborado por uma comissão de juristas, coordenada pelo ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ), Luiz Fux, escolhido esta semana pela presidente Dilma Rousseff para ocupar a vaga aberta no Supremo Tribunal Federal (STF) com a aposentadoria do ministro Eros Grau. As mudanças, segundo ele, devem reduzir em pelo menos 50% o tempo de duração de um processo. No caso de contenciosos de massa, o percentual seria ainda maior, de 70%. Para melhorar a produtividade, está prevista a criação de um mecanismo batizado de “incidente de resolução de demandas repetitivas”, considerado – até pelos opositores mais ferrenhos – a maior inovação trazida pelo projeto.

Requerido o incidente, um tribunal superior ou de segunda instância suspenderia a tramitação de ações idênticas até definir o tema em discussão. No caso de decisão de tribunal superior, o entendimento adotado deverá ser obrigatoriamente seguido pelas instâncias inferiores. “Nossas decisões devem ser respeitadas”, diz o ministro Luiz Fux, que acompanhou a aprovação do texto pelo Senado. “Por que o juiz, em nome da sua suposta independência jurídica, pode proferir uma decisão contrária a de um tribunal superior?”

Para acelerar a tramitação do processo, também está prevista a realização de uma audiência de conciliação antes do início da análise do pedido pelo juiz de primeira instância. Medida que, mal aplicada, segundo o professor Costa Machado, não resolverá o problema de lentidão da Justiça. “Hoje, em São Paulo, demora-se até um ano e meio para marcar uma audiência de conciliação nos juizados especiais”, afirma. Se não houver consenso, o magistrado passará a julgar o caso, mas decisões interlocutórias – aquelas tomadas até a sentença – raramente poderão ser questionadas por meio de agravos de instrumento. “Decisões sobre provas não poderão mais ser agravadas. Só discutidas na apelação. Deram um poder enorme ao juiz”, diz o professor.

Para o secretário-geral do Conselho Federal da OAB, Marcus Vinícius Furtado Coelho, que participou da comissão de juristas que elaborou o novo código, a alteração vai, na prática, facilitar a vida do advogado, “que deixará de ser obrigado a agravar a cada respiro do juiz”. Segundo ele, o recurso poderá ser usado em poucos casos, como o questionamento de uma liminar ou tutela antecipada. “Os tribunais julgam só agravos. Não estão analisando as apelações”, afirma Coelho.

As decisões provisórias ganharam novos nomes – tutela de urgência e tutela de evidência – e poderão ser mais facilmente concedidas, de acordo com o professor Costa Machado. “Uma tutela antecipada poderá ser dada sem a comprovação do periculum in mora (perigo da demora)”, afirma ele, criticando também o fato das novas regras processuais facilitarem os arrestos.

Nas execuções provisórias, o juiz poderá dispensar a caução, se a parte comprovar que não tem condições de apresentá-la. “É um ponto bastante polêmico que, certamente, será motivo de muita discussão na Câmara dos Deputados”, diz o dirigente da OAB.

Proferida a sentença, de acordo com Coelho, caberá ao desembargador decidir se a apelação terá efeito suspensivo, adiando a execução da sentença. “O projeto acaba com o efeito suspensivo automático. Por que uma decisão de primeira instância não pode ser imediatamente cumprida?”, questiona o secretário-geral, lembrando que possíveis imperfeições no texto ainda podem ser corrigidas na Câmara dos Deputados.

O texto aprovado pelo Senado tem 1.008 artigos – 212 a menos que o atual, de 1973 -, distribuídos em cinco livros. Os senadores mudaram alguns pontos do texto original entregue pela comissão de juristas. Entre eles, o poder dado aos juízes de primeira instância de alterar ou adaptar o ritual do processo, mas nada foi modificado em relação ao poder judicial para aumentar prazos e inverter a ordem de produção de provas.

Projeto que altera ação penal segue rumo oposto

Os projetos de reforma dos códigos de processo civil e penal foram elaborados quase que simultaneamente, têm tramitações idênticas – foram aprovados no Senado e agora aguardam análise na Câmara dos Deputados – e partiram da iniciativa do senador José Sarney (PMDB-AP), presidente da casa legislativa, que nomeou duas comissões de juristas para desenvolvê-los. As semelhanças entre as duas propostas, no entanto, terminam aí. O projeto do novo Código de Processo Civil segue um rumo exatamente oposto ao do Código de Processo Penal: enquanto o primeiro fortalece a instância inicial da Justiça ao reduzir o número de recursos, para garantir maior rapidez aos processos, o segundo enfraquece o juiz de primeiro grau ao transferir parte de suas tarefas a um outro magistrado, burocratizando a tramitação das ações judiciais.

O projeto de Código de Processo Penal cria a figura do juiz de garantias, destinado a julgar os pedidos de medidas cautelares feitos pelo Ministério Público em ações criminais – como ações de busca e apreensão, escutas telefônicas, quebras de sigilo fiscal e bancário e prisões preventivas e temporárias. Esse magistrado, no entanto, não será o mesmo que julgará o processo, que continua a ser o atual juiz de primeira instância. A ele caberá a chamada fase de instrução das ações criminais – ou seja, toda a produção de provas feita pela polícia e pelo Ministério Público. Ao juiz da causa caberá apenas seu julgamento: ele deixa de ter poderes para determinar o aprofundamento das provas.

Crítico do projeto, o desembargador Fausto De Sanctis, do Tribunal Regional Federal (TRF) da 3ª Região, afirma que, com a criação do juiz de garantias, haverá “perda de conhecimento, já que o juiz processante só vai ter ciência de todo o teor de uma investigação muito depois de ela ter ocorrido”. De Sanctis diz que a preocupação do projeto de reforma do processo penal tem sido a desvalorização da primeira instância da Justiça. “Sem dúvida alguma isso vai comprometer o já moroso processo penal”, diz.

A opinião do juiz soma-se às críticas que o projeto já recebeu de outros integrantes do Judiciário e do Executivo, Ministério Público e polícias. E, ao contrário do que ocorre com o projeto de reforma do processo civil, tem o apoio dos advogados, para quem as mudanças dão às partes “paridade de armas”, expressão usada em um texto da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) apresentado ao Senado no início da tramitação da proposta.

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