Congresso Nacional prepara reformas em seis códigos de leis
Fonte: O Globo, 12/11/2012
O Congresso decidiu mudar o ordenamento jurídico do país: avança, simultaneamente, na reforma de seis códigos de leis fundamentais para pessoas e empresas e, também, nas regras sobre a partilha de tributos entre governos.
Essas mudanças vão afetar pelas próximas décadas os seguintes direitos individuais, coletivos e empresariais: de liberdade (Códigos Penal e de Processo Penal); de voto (Código Eleitoral); de relações de consumo (Código do Consumidor); de negócios (Código Comercial); de acesso à Justiça (Código de Processo Civil); e, de partilha de tributos entre governos (o “Pacto Federativo”).
Na história recente não há registro de reformas legislativas com tal dimensão e profundidade, executadas ao mesmo tempo e em ritmo acelerado — exceto nos períodos das assembleias nacionais eleitas para mudar a Constituição.
Promove-se ampla substituição dos principais conjuntos de leis comuns, aquelas que regulamentam o cotidiano das pessoas e empresas. E pretende-se mudar as regras constitucionais das relações de poder entre a União, estados e municípios na divisão de tributos.
Desde abril, o Senado e a Câmara aceleraram a análise simultânea de diferentes projetos para os novos códigos. Nas propostas há de tudo.
Inovações, como o fim da liberdade provisória para acusados de homicídios (a Lei Fleury). Polêmicas, como a flexibilização das regras sobre uso de drogas, aborto e eutanásia, e a redução de penas do crime de gestão fraudulenta — uma das bases do processo do mensalão.
E, também, retrocessos, como a tentativa de reinstauração da censura em nome da proteção dos “direitos da personalidade”.
O artífice desse inédito processo reformista é José Sarney, presidente do Senado e ex-presidente da República.
Aos 82 anos, Sarney celebra o seu cinquentenário de vida parlamentar como autor de seis das sete iniciativas em curso para reformas em códigos de leis. A exceção é o Código Comercial, patrocinado pelo PT.
É uma ousadia política que ele viabilizou na aliança com o ex-presidente Lula e a presidente Dilma Rousseff. Pelo seu cronograma, as mudanças devem estar aprovadas até 2014.
Há consenso sobre a necessidade de atualização dos códigos. Mas são crescentes as críticas no Congresso sobre a forma e o método adotados, que aparentemente terminam por influenciar o conteúdo.
Comissões de juristas foram criadas para debater e escrever os anteprojetos, que agora estão em análise simultânea no Senado e na Câmara. É um roteiro legislativo inverso ao habitual e que foi seguido na Constituinte de 1987, no qual os projetos nascem dentro do Congresso. Sarney era presidente da República na época da elaboração da atual Constituição. Chegou a criar uma “comissão de notáveis” que preparou um projeto. O documento foi recebido e morreu numa gaveta do Legislativo.
— Precisamos adaptar a legislação ao novo pacto social — argumenta Sarney. —Essa é uma tendência mundial. Aqui a votação de um código não levava menos de 20 anos, por isso nós resolvemos criar comissões de especialistas para oferecer subsídios ao Congresso.
Acrescenta:
— A experiência mostra que isso evita a interferência no trabalho normal das comissões. E tem a vantagem de que já se começa a trabalhar com os projetos em tramitação. Ou seja, não tem a iniciativa de elaboração no Congresso, ele examina o projeto.
Tem dado certo, ele acha.
— Cada uma das comissões de especialistas fez mais de 30 audiências públicas pelo país e, além disso, recebemos milhares de sugestões — diz o presidente do Senado. — O que fizemos foi deixar a parte fundamental, a dos anteprojetos, pronta para o Congresso decidir, iluminado e com todas as luzes sobre ele.
Há quem veja riscos nessa mudança do processo legislativo para reformas simultâneas em um conjunto tão amplo de leis fundamentais.
Um deles é Celio Borja, ex-ministro do Supremo, ex-presidente da Câmara e relator da última revisão do Código Penal, em 1973.
— É muito arriscado se fazer tudo isso ao mesmo tempo, sem consulta ampla ou com pouco debate — pondera. —É preciso mais cuidado. A maioria das ideias que estão por aí não me convence, algumas são quase juvenis. Mas, no sentido geral, estão empurrando uma nova produção legislativa, infraconstitucional, que vai acabar por regular excessivamente a liberdade privada.
Há aspectos positivos e, entre eles, ressalta Borja, o mais relevante é que o País “está se repensando de maneira global”. Mas identifica ameaças:
— Tenta-se submetê-lo a uma ordem única, a da obediência ao que seria politicamente correto, e, com isso, o espírito da própria vontade vai diminuir. O risco de dessintonia é grande, por exemplo, se não puderem ser combinados os códigos Penal e de Processo Penal.
No Congresso há três décadas e meia, o senador Pedro Simon (PMDB-RS) diz temer pelos resultados desse ímpeto reformista pela pouca transparência e restrição do debate ao mundo dos escritórios jurídicos:
— As comissões de especialistas de fora, com alguns juristas convidados, é que fazem o trabalho todo. Nelas não tem um único parlamentar. Os projetos chegam aqui prontos e seguem seu caminho.
Na semana passada, o Senado recebeu um novo conjunto de anteprojetos — emendas constitucionais que redesenham a partilha de tributos entre governos.
— Isso é perigoso — ele acha. — As leis precisam ser mudadas, o Código Civil tem um século, mas essa forma e esse jeito de fazer são complicados, porque vão afetar interesses de gerações inteiras. E, principalmente, porque temos um parlamento em crise, sem fartura de valores, tanto que estamos aí com uma CPI sob suspeita.
Há críticas, também, na Câmara.
— O que estamos vendo não é normal e é muito preocupante — diz o deputado Miro Teixeira (PDT-RJ), que foi constituinte em 1987. — Temos a imposição do pensamento de uma maioria parlamentar, que é passageira, sobre códigos de leis que vão durar no mínimo 40 anos. Aliás, o mecanismo usado é o mesmo do governo Ernesto Geisel (1974-1979), que tinha mania de criar comissões e mandar anteprojetos para o Congresso votar.
Mais polêmico do que o método legislativo adotado para essas reformas simultâneas, só mesmo o conteúdo de algumas das propostas em análise no Senado e na Câmara. Exemplos:
1) Restauração da censura: o texto em debate para o novo Código de Processo Civil previa, até o início da semana passada, a instituição de censura através de “procedimento especial” (ação inibitória e ação de remoção de ilícito) “para a tutela adequada dos chamados novos direitos — os direitos da personalidade e outros direitos sem conteúdo patrimonial”, na descrição do relator-geral, deputado Sérgio Barradas Carneiro (PT-BA).
2) Restrição do acesso à Justiça. No mesmo projeto restringe-se a apresentação de recursos, ou apelações, aos fóruns de regiões metropolitanas. Por esse critério, as pessoas residentes em áreas remotas na Amazônia —metade do território nacional — precisariam viajar, em alguns casos de barco e durante dias, para conseguir levar seus requerimentos aos juízes.
3) Redução de penas do crime de gestão fraudulenta. Há propostas para o Código Penal que objetivam diminuir a penalização dos delitos empresariais, na contramão do que o Supremo Tribunal Federal está fazendo no julgamento do mensalão. O Código atual prevê pena de três a 12 anos de prisão para esse tipo de crime, mas sugere-se que no novo Código a pena seja limitada entre um e cinco anos de cadeia. Em tese, alguém condenado no processo do mensalão, poderia cumprir pena menor se a proposta for aprovada para o código do futuro.
4) Mudança da Justiça Eleitoral: significa a criação de novo braço do Judiciário federal, com juízes, sedes, funcionários e orçamento próprio em cada distrito eleitoral do país. (Proc. 03360006020035020382 – RO)