Programa Minha Casa, Minha Vida: vícios, material e formal
* Sânio Eduardo Fontes de Aquino, advogado
No século XXI, quando o cenário é de minorias tendo sua proteção jurídica debatida em espaços proibidos ou impensados no passado, a isonomia material pretendida com a proteção da mulher no programa “Minha Casa, Minha Vida” (MCMV), pode ser interpretada como um retrocesso de direitos.
Se por um lado é certo que ainda não raiou o sol da igualdade plena de direitos que ilumine e reequilibre a diferença entre homem e mulher, por outro, há momentos em que, na dinâmica da vida em sociedade, o anseio do legislador em restabelecer ou fixar parâmetros de igualdade social extrapola o razoável.
Para exemplificar, toma-se como objeto de observação o tratamento legal dado à mulher pela Medida Provisória 561 de 8 de março de 2012 . Segundo a Presidenta Dilma Rousseff , o Programa Minha Casa, Minha Vida nasce da necessidade de equacionar o problema da habitação no país. Referindo-se à crise da construção civil entre os anos de 2008 e 2009, menciona que o governo que antecedeu o seu adotou medidas de reaquecimento do setor, proporcionando a famílias com renda média de até 3 (três) salários mínimos a aquisição da casa própria através de subsídios governamentais.
É sabido que a condição fática e o papel da mulher é, indubitavelmente, o de arrimo, econômico e/ou afetivo, especialmente a de família de baixa renda.
Mas nem sempre foi assim. Os textos legais retratam a trajetória da mulher, rumo a uma conquista acanhada e vagarosa de seu status de igualdade que culminou com o abalo e o declínio da sociedade conjugal patriarcal.
Não se pode ignorar a letargia com que a mulher alcançou a igualdade de direitos e deveres na família, foram centenas de anos de subjugo até a promulgação da Constituição de 1988.
Maria Berenice Dias afirma que
a presença da mulher é a história de uma ausência. Era subordinada ao marido, a quem devia obediência. Relegada da cena pública e política, sua força produtiva sempre foi desconsiderada, não sendo reconhecido o valor econômico dos afazeres domésticos. Mas, felizmente um novo caminho foi trilhado para o estabelecimento da igualdade de direitos entre homens e mulheres, fato que exige um novo tipo de contrato conjugal, pois hoje as mulheres não são mais esposas sem voz e sem voto.
Além de repetir o princípio da igualdade, inaugurado na Carta de 1973, o texto de 1988 enfatiza a isonomia entre homens e mulheres (CRFB, art. 5º, I); impõe ao Estado a promoção do bem de todos, sem preconceito de sexo, como um objetivo fundamental (CRFB, art. 3º, IV) e, garantindo um tratamento isonômico ao conceito de família (CRFB, art. 226), ratifica que os direitos e deveres referentes à sociedade conjugal devem ser exercidos igualmente pelo homem e pela mulher (CRFB, art. 226, § 5º).
Rosana Fachin registra o momento político atual ao registrar que hoje a mulher, na plenitude de sua condição feminina, é parte fundante na estrutura social e passou a exercer funções relevantes para sua emancipação pessoal e profissional, para a sociedade e para a família .
Cumpre lembrar a feliz extinção do regime jurídico patriarcal do antigo Código Civil (CC/1916, artigos 233-239 e 240 a 255), diploma em que era atribuída ao marido a chefia da sociedade conjugal e a administração dos bens comuns, enquanto que à mulher, mera colaboração administrativa com seus bens particulares submetidos à administração do marido.
Em que pese haver no programa atendimento a distintas camadas sociais, resta claro o alvo principal do MCMV como sendo a população de baixa renda, o que se opera sob os lemas da distribuição de renda e da igualdade de oportunidades, segundo Rousseff.
Ocorre que os lemas não estão contemplados no texto do art. 35-A da Lei 11.977/09, inserido pela Medida Provisória em comento:
LEI 11.977/09
Art. 35-A. Nas hipóteses de dissolução de união estável, separação ou divórcio, o título de propriedade do imóvel adquirido no âmbito do PMCMV, na constância do casamento ou da união estável, com subvenções oriundas de recursos do Orçamento-Geral da União, do FAR e do FDS, será registrado em nome da mulher ou a ela transferido, independentemente do regime de bens aplicável, excetuados os casos que envolvam recursos do FGTS.
A titularidade do imóvel atribuída previamente à mulher ao fim da relação conjugal, aliada à facilitação exclusivamente direcionada para ela, no momento da candidatura da família por uma unidade, ignora a evolução do Direito orientado pelo fato social das famílias contemporâneas (ou aquelas de que, só agora, a sociedade começa a aceitar a existência).
Por certo que as regras não serão aplicadas quando o casal tiver filhos e a guarda deles após a separação for dada exclusivamente ao pai – caso em que, a propriedade do imóvel comum será transferida para o homem – e não haverá incidência das regras aos imóveis cuja aquisição tenha envolvido recursos do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS) .
Em que pese tudo isso, há desarranjos. Medida Provisória vai além de desconsiderar a situação econômica do companheiro ou cônjuge varão, no momento da separação, retirando dele a propriedade e impondo transferência total do imóvel para a mulher. A meação, direito isonômico dos conviventes previsto no Código Civil, foi extirpada do contexto de um tradicional sonho de cidadania, o da casa própria – um dos maiores bens entre todos os que a pessoa pode adquirir, qualquer que seja sua classe social.
Mais que isso, tenha-se em mente que homens integrantes de núcleo familiar com pessoas de mesmo sexo; com pessoas ligadas por outros tipos de afetividade ou de parentesco, sem prejuízo de formas aqui não contempladas, foram alijadas da proteção estatal no MCMV. Isso porque o diploma contempla a mulher e não a família, em frontal contrariedade com o valor constitucional de proteção ao núcleo social.
Importa registrar, ainda, o vício formal de que padece a Medida Provisória 561/2012. Pode ser que haja “relevância” no tema objeto da MP do MCMV, mas é dificultada a visualização da “urgência” para o tratamento diferenciado que ela (MP) veicula e impõe. Pelo menos uma urgência que exigisse conclusão legislativa em 100 dias, que é o prazo do processo legislativo sumário.
Trata-se de mais uma hipótese que reclama interferência do Judiciário sobre o Executivo (“freios e contrapesos”), dada a inconstitucionalidade formal da medida, que – conforme retro mencionado – inova no cenário jurídico da cidadania e infringe norma disposta no art. 62, par. 1, “a” da CRFB.
Assiste razão ao Min. Sidney Sanches que ao proferir seu voto na ADIn 1.516 exarou: ” é de se executar, apenas, a hipótese em que a falta de urgência pode ser constatada objetivamente”.
Resta claro o retrocesso jurídico configurado na hipótese inaugurada pelo programa social que visa à proteção unilateral da mulher, em detrimento do núcleo, da família, que é a gênese da convivência civilizada.
Após a extinção do instituto “pátrio poder”, antiga aberração jurídica que atribuía ao homem um status de poder patriarcal, editou-se um “mátrio domínio”, em detrimento de uma gama de interesses igualmente legítimos. Data máxima vênia, para longe de alcançar a isonomia, a MP em questão aproxima a Ordem Jurídica de uma discriminação em que reside um indesejável retrocesso.
É imperativo concluir que a MP 561/12 viola a isonomia no trato estatal de direitos das famílias, à luz de valores hodiernos e em sintonia com o espírito constitucional, interferindo, pois, em matéria de cidadania. Flagrante vício de iniciativa e violação do devido processo legislativo.